O que pode haver em comum entre um monstro fictício da série Arquivo X e um personagem temido nas ruas do Recife? À primeira vista, parecem mundos diferentes — um nascido da ficção científica americana, outro forjado nas noites quentes dos bairros populares de Pernambuco. Mas ambos têm um elemento visceral em comum: o desejo (ou a necessidade) de consumir fígados humanos.
Esse detalhe aparentemente grotesco esconde uma simbologia profunda e ancestral. No episódio "Squeeze", o terceiro da primeira temporada de Arquivo X, somos apresentados a Eugene Victor Tooms — um mutante, possivelmente de origem extraterrestre, que se alimenta de fígados humanos para se manter jovem por mais de um século. Já no Recife, desde meados do século XX, os moradores contam sobre um homem doente, geralmente descrito como hanseniano ou deformado, que precisava comer fígados humanos — especialmente de crianças — para se curar. Seu nome? Papa-Figo.
Mas por que o fígado?
O fígado como símbolo de vida e regeneração
Ao longo da história, o fígado foi muito mais que apenas um órgão vital. Na Antiguidade, ele era considerado o centro das emoções e da energia vital. Os gregos acreditavam que a alma residia nele. Na mitologia, Prometeu teve seu fígado devorado por uma águia diariamente, mas o órgão se regenerava toda noite — reforçando sua associação com a capacidade de renascimento e cura.
Do ponto de vista da medicina tradicional e da alquimia, o fígado era visto como o grande purificador do corpo. Beber infusões ou ingerir o fígado de animais era, para muitos povos, uma forma simbólica (e literal) de absorver força, saúde e vida.
Na psicanálise, órgãos como o fígado ganham camadas simbólicas. Eles se tornam projeções do que desejamos absorver ou eliminar. Quando vemos monstros devorando vísceras, há uma mistura de repulsa e fascínio por essa metáfora: consumir o outro para fortalecer a si mesmo.
Papa-Figo: a lenda urbana e seus contornos sociais
A figura do Papa-Figo se cristalizou na cultura pernambucana como uma entidade assustadora, frequentemente usada para controlar crianças (“se não dormir cedo, o Papa-Figo vem te pegar!”). A lenda tem raízes nas exclusões sociais: muitos relatos mencionam o Papa-Figo como um homem doente, marginalizado, que vivia nos arredores dos hospitais ou das zonas periféricas da cidade.
Segundo os boatos, ele sofria de uma doença incurável e, por isso, precisava se alimentar de fígados humanos para sobreviver. Esse elemento de alimentar-se para curar-se é central — e aqui, notamos a semelhança com Tooms, o monstro de Arquivo X que também se vê compelido a extrair vísceras humanas para continuar vivo.
O reticulino de Arquivo X: um monstro moderno com raízes arquetípicas
No episódio "Squeeze", Tooms é descrito como um ser que hiberna por 30 anos e acorda para matar cinco pessoas, retirando seus fígados com as próprias mãos. Seu corpo é elástico, quase líquido, permitindo que entre por frestas e canos de ventilação. O que há de mais assustador nele, no entanto, não é a mutação — mas o impulso incontrolável de se alimentar de algo essencial.
O reticulino representa o medo do que está oculto nos espaços do cotidiano. Assim como o Papa-Figo assombrava hospitais, becos e mercados, Tooms vive no subsolo, nas sombras das cidades americanas. Ambos são figuras liminares, que habitam as fronteiras entre o humano e o monstruoso, entre o biológico e o simbólico.
Horror universal, sotaque regional
A comparação entre o Papa-Figo e o monstro de Arquivo X mostra como o terror trabalha com os mesmos arquétipos — mesmo separados por continentes. Seja nos becos do Recife ou nos esgotos de Baltimore, a imagem do ser que devora fígados fala com medos ancestrais: o medo da morte, da degeneração, da doença, da exclusão social — e daquilo que fazemos (ou deixamos de fazer) para sobreviver.
Ao transformar o fígado em símbolo de vida, cura e até juventude eterna, tanto o folclore quanto a ficção científica nos lembram de que o horror não mora apenas na criatura, mas nos espelhos que ela nos devolve.
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