“Quebranto”, de André Balaio: quando o cotidiano pernambucano encontra o Sobrenatural

Quando o pernambucano André Balaio - roteirista, quadrinista e co‑fundador do site O Recife Assombrado - publicou Quebranto pela Editora Patuá, em março de 2018, o livro chegou discreto às prateleiras, mas logo chamou atenção dos prêmios literários: finalista do Sesc e do Cepe Nacional 2017, 3.º lugar no concurso da UBE‑RJ e eleito “melhor obra de ficção de 2018” pela Academia Pernambucana de Letras.

Treze contos, muitas armadilhas

A coletânea reúne 13 histórias que começam sob a luz diáfana da normalidade para, sorrateiramente, revelar o insólito. Balaio usa a velha estratégia da “virada de chave” - o leitor circula por cenas banais até trombar com algo que desmonta o real. Não há susto fácil, tampouco chuva de fantasmas: o terror é psicológico, embebido em culpa, desejo ou violência contida. A comparação com Histórias extraordinárias de Edgar Allan Poe é inevitável, mas a construção lembra mais o fantástico de Borges e Cortázar, onde o estranho germina dentro do corriqueiro. 

O Recife como território de assombros

Balaio faz da geografia recifense um personagem: vielas, casarões e lendas urbanas aparecem em “O lado de lá” (fantasma vencedor do Prêmio Off‑Flip 2016), “Perto de casa” (a voz materna ecoando após o assassinato) ou “Restinga”, vingança que brota dos mangues. A matriz folclórica - lobisomem, mulher‑no‑espelho, noiva cadáver - dialoga com Assombrações do Recife Velho, de Gilberto Freyre, mas a lente é contemporânea: violência doméstica, cobiça corporativa e necrofilia transformam mitos em metáforas sociais.

Doença, feitiço e a linha tênue da razão

No conto‑título, um fazendeiro autoritário adoece sem causa aparente; a filha busca uma curandeira anciã (a magnífica Maria Altéia) para “quebrar o olho‑gordo”. A cena da velha descendo da mangueira - pupilas brancas, cachimbo fedendo - ilustra o método do autor: narrar com minúcia realista até que o impossível se insinue e o leitor questione se é crendice ou maldição. O mesmo truque alimenta “Branco”, história final que encerra o volume com um golpe seco na descrença do protagonista - e do público.

Terror sem litros de sangue

Quem espera um slasher no estilo Pânico encontrará outra atmosfera. Balaio prefere “assustar no retrovisor”: o genuíno medo nasce da ambiguidade entre visível e invisível, explicável e inexplicável. O efeito é homeopático; cada texto deposita pequenas inquietações que se somam. Por isso, os contos foram definidos pelo autor como “insólitos” mais que “terror” - o sobrenatural serve para falar de sentimentos que implodem as barreiras do racional.

Linguagem enxuta, ritmo de suspense

A prosa é limpa, sem floreios góticos. Balaio relata diálogos coloquiais, gírias do interior e descrições objetivas que lembram o realismo da crônica nordestina; porém, quando a realidade vacila, o texto assume a cadência do medo. Cada final reserva a “virada de percepção” que deixa o leitor com as imagens pulsando na cabeça.

Legado inicial, caminho promissor

Quebranto é estreia em livro, mas Balaio já traz bagagem de roteiros, HQs (Algumas Assombrações do Recife Velho) e tours noturnos pela cidade, o que explica a segurança ao mesclar folclore, urbanidade e horror. Se, nas telas dos anos 1990, o susto virou moda com ganchos e litros de sangue, o autor pernambucano prova que ainda há espaço para o terror de atmosfera, onde o espanto surge no detalhe e o leitor termina perguntando: “E se for verdade?”

Indispensável para quem quer conhecer a nova safra do horror brasileiro - aquela que faz a espinha arrepiar sem precisar levantar a voz.

Comentários