A Lenda do Lobisomem do Poço da Panela: Assombração, Fé e as Margens do Capibaribe

A narrativa de "Assombrações do Recife Velho", obra do renomado escritor e sociólogo Gilberto Freyre, nos transporta para um Recife de tempos idos, onde histórias de criaturas sobrenaturais se misturam com o cotidiano dos moradores mais humildes. O trecho sobre Josefina Minha-Fé é um exemplo perfeito de como as crenças populares se entrelaçam com a vida social e as desigualdades da época.


Josefina, uma negra que conheceu o auge da juventude no Poço da Panela, é descrita como uma mulher que, embora envelhecida, ainda carregava vestígios de uma beleza que havia atraído até mesmo um famoso poeta brasileiro. Freyre, com sua habilidade singular em descrever detalhes sociais e físicos, utiliza a figura de Josefina para pintar um retrato da mulher negra em uma sociedade hierarquicamente dividida, onde até sua beleza era um fator a ser notado, admirado e, por vezes, subjugado.

A história ganha contornos fantásticos quando Josefina, ainda jovem, encontra um lobisomem. No Recife do século XIX, lendas de lobisomens e outras criaturas sobrenaturais eram comuns, especialmente entre as camadas mais pobres da população, cujas origens africanas e indígenas mantinham viva a crença no sobrenatural. Freyre, no entanto, não apenas registra o acontecimento como uma história fantástica, mas a utiliza para expor questões de poder e marginalização.

O lobisomem que persegue Josefina não é apenas uma criatura mítica. Ele toma a forma de um "doutor pálido", um bacharel que, à primeira vista, parece um respeitável cidadão da elite local, mas que se revela um monstro amarelento e doente, que ataca mulheres, especialmente as virgens, em seu estado sobrenatural. A escolha de Freyre por destacar a figura de um doutor como o lobisomem é simbólica, revelando como o poder e o privilégio se convertem em opressão. O doutor representa a classe dominante que, sob a fachada de civilidade e sofisticação, carrega uma violência latente e predatória. 

O fato de Josefina, uma mulher negra e jovem, ser atacada pelo lobisomem também não é acidental. Ela, por sua vez, representa as camadas populares e vulneráveis da sociedade recifense, expostas à violência, tanto real quanto simbólica, daqueles que detêm poder. A ligação entre o doutor e o lobisomem evidencia a dualidade da figura do opressor: um ser que, durante o dia, veste roupas finas e ostenta educação e prestígio, mas que, à noite, se transforma em um predador aterrador, à espreita dos mais fracos e desprotegidos.

Gilberto Freyre, com sua prosa carregada de regionalismos e referências ao cotidiano recifense, utiliza a lenda do lobisomem para explorar o universo social da cidade, revelando a tensão entre o urbano e o rural, o civilizado e o primitivo. As encruzilhadas, locais onde o lobisomem se espojava, simbolizam esses pontos de encontro entre diferentes mundos. O próprio bairro do Poço da Panela, uma área à margem do centro urbano, é palco dessa intersecção entre o real e o fantástico, o velho e o novo.

Freyre, sendo um dos grandes intérpretes do Brasil colonial e patriarcal, sempre se preocupou em investigar como as estruturas de poder se manifestavam nas relações cotidianas, e a história de Josefina Minha-Fé é um exemplo disso. O lobisomem, figura de terror popular, serve como uma metáfora para a exploração e o abuso das elites sobre o povo simples. A opressão dos poderosos sobre os marginalizados é recorrente no Brasil colonial e imperial, e Freyre, com sua sensibilidade, capta essa dinâmica ao retratar as tensões sociais de um Recife velho, que ainda convivia com o peso da escravidão e da desigualdade.

Josefina, depois de sua experiência traumática, passa a ser conhecida como "Minha-Fé", uma referência à proteção divina que ela clamou no momento de perigo. A ligação com Nossa Senhora da Saúde, a quem o lobisomem temia, reforça a importância da fé popular como uma forma de resistência ao medo e à opressão. A fé, aqui, não é apenas religiosa, mas também uma expressão da esperança e da resiliência dos mais humildes, que enfrentavam não só os terrores da noite, mas também os horrores diurnos da injustiça social.

Em última análise, Gilberto Freyre, ao relatar as assombrações do Recife velho, nos oferece um retrato profundo e detalhado da vida social da cidade, onde o fantástico e o real se entrelaçam de maneira inseparável. O lobisomem, a figura mitológica que percorre os becos e vielas, é também um reflexo das tensões e injustiças que assombram a sociedade recifense — um símbolo das forças invisíveis que continuam a moldar as relações de poder e opressão no Brasil.

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