As Luzes Misteriosas do Morro do Arraial: Uma Herança Celta no Recife Velho?

No coração de Casa Forte, no Recife, a memória da guerra e das batalhas do passado não vive apenas nos livros de história, mas também nas crenças populares que atravessam gerações. Gilberto Freyre, em seu célebre livro Assombrações do Recife Velho, oferece uma visão rica e fascinante sobre essas tradições, que misturam espiritualidade, memória e o inexplicável. Freyre, com sua habilidade única de entrelaçar história e folclore, narra como as luzes misteriosas, vistas por antigos moradores da região, ecoam as crenças celtas, trazidas ao Recife através de heranças culturais invisíveis, mas poderosas.


As "luzinhas" descritas por Freyre, que apareceriam nas imediações do Morro do Arraial, são vistas pelos mais antigos como sinais da presença de espíritos de soldados, guerreiros que ali tombaram durante as batalhas travadas entre as forças luso-brasileiras e flamengas no século XVII, em pleno contexto das invasões holandesas. Para moradores como Josefina Minha-Fé, citada por Freyre, essas luzes não eram nada além das almas daqueles que morreram lutando pela terra, zumbis que vagam pelos antigos campos de batalha. Segundo ela, essas almas vagavam pelos morros, e não pelo interior das casas, reforçando a noção de que estavam conectadas ao solo que um dia foi palco de sangue e guerra.

Freyre, sempre em busca de entender as camadas mais profundas da cultura pernambucana, traça um paralelo intrigante entre essas crenças populares e as tradições celtas, particularmente as histórias que conheceu através do grande poeta irlandês William Butler Yeats. Segundo Yeats, havia entre os celtas a crença de que luzes misteriosas poderiam ser vistas em antigos campos de batalha, sinais de almas inquietas, talvez mesmo de sobrevivências espirituais de guerreiros. Freyre se pergunta se essa crença nas luzes que vagam pelos morros de Casa Forte e do Arraial poderia ter raízes celtas, uma sugestão que pareceu surpreender o próprio Yeats durante suas conversas. O poeta irlandês, profundo conhecedor do ocultismo e das tradições esotéricas, via na cultura brasileira uma possível conexão com antigas práticas europeias, um fio invisível que ligaria Pernambuco ao legado dos povos antigos da Europa.

A presença holandesa em Pernambuco, especialmente durante o governo de Maurício de Nassau, trouxe uma confluência de culturas e tradições que marcou a história da região. No entanto, a sugestão de Freyre de que a influência celta poderia ter encontrado uma nova morada nas terras tropicais vai além da simples troca cultural. Ele nos convida a refletir sobre a persistência das crenças populares e como elas carregam em si fragmentos de antigas tradições que viajaram com os colonizadores e imigrantes.

A Casa Forte e o Morro do Arraial são locais emblemáticos do Recife, não apenas pelos seus papéis nas batalhas da Insurreição Pernambucana, mas também como cenários onde a história e o sobrenatural se encontram. As luzes, que até hoje alguns afirmam ter visto, são mais do que fenômenos misteriosos. Elas são símbolos da resistência, tanto das almas daqueles que tombaram quanto das tradições orais que persistem, sendo transmitidas de geração em geração.

Em tempos em que o Recife buscava modernizar-se, Freyre nos lembra de olhar para o passado com sensibilidade, reconhecendo a presença viva da história nas crenças e nos costumes populares. A cultura pernambucana, sempre em diálogo com suas raízes mais profundas, carrega em si um vasto patrimônio de memórias que resistem ao tempo.

E será que essas luzes misteriosas, que aparecem e desaparecem como lanternas de carro de cavalo, ainda podem ser vistas nas noites escuras do Recife? Freyre não nos dá uma resposta definitiva. O que ele nos oferece é a sugestão de que, assim como as histórias, as almas dos que tombaram continuam a vagar, esperando para serem lembradas.

A rica e mística herança do Recife nos chama a preservar não apenas os monumentos e marcos históricos, mas também as crenças que, como as luzes nos morros, iluminam os cantos mais sombrios de nossa memória coletiva. Afinal, como nos lembra Freyre, o Recife Velho é feito de assombrações – não só dos mortos, mas também das histórias que nos contam sobre eles.


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