O Recife Velho é um lugar onde o passado vive em simbiose com o presente, e poucas épocas do ano refletem essa convivência tão bem quanto o período das festas juninas, especialmente durante o São João. No final do século XIX, essa festividade era uma verdadeira explosão de cores, sabores e celebrações que se misturavam com as tradições pagãs e cristãs, criando um ambiente místico. Gilberto Freyre, em seu clássico Assombrações do Recife Velho, nos leva a esse Recife antigo, onde as fogueiras queimavam não apenas para aquecer os corpos, mas também para manter o sobrenatural à distância.
As ruas do Recife ficavam repletas de grandes fogueiras, erguidas tanto nas vias quanto nos pátios das casas. Não eram apenas para celebrar o santo, mas também para evitar que o Diabo, segundo as crenças populares, viesse dançar à meia-noite diante delas. Ao redor dessas fogueiras, jovens se envolviam em batalhas de fogos de artifício — uma tradição perigosa que não raro deixava cicatrizes: cegueira, queimaduras graves e, em casos mais trágicos, a morte. Era o "culto do fogo", como Freyre descreve, uma manifestação fervorosa de devoção e, ao mesmo tempo, de risco.
Essa devoção ao fogo também levava à realização de rituais quase milagrosos. Negros idosos, como o lendário Manuel de Sousa, criado do tio de Gilberto Freyre, eram conhecidos por atravessar fogueiras com os pés descalços, gritando "Viva o senhor São João!", sem sofrerem qualquer queimadura. A fé em São João, acreditava-se, era suficiente para proteger aqueles que ousavam desafiá-la.
Porém, as celebrações do São João no Recife Velho não se limitavam ao fogo. Havia um outro culto igualmente poderoso e simbólico: o culto da água. Em muitas cidades antigas do Brasil, inclusive no Recife, os famosos "banhos de São João" eram parte essencial das festividades. Essas práticas envolviam mergulhos em açudes, riachos e rios, como o Capibaribe e o Beberibe, que, naquela noite, eram considerados purificadores. Para muitos, a água possuía virtudes especiais nessa data. O banho simbólico, muitas vezes acompanhado de cantigas como “Na noite de São João, hei de banhar-me no açude”, era visto como uma maneira de lavar corpo e alma, deixando nas águas as mazelas da vida.
Contudo, as águas dos rios e riachos recifenses não eram apenas purificadoras. Havia uma crença mágica de que, na noite de São João, essas águas também revelavam o futuro. O que se visse — ou deixasse de ver — no reflexo das águas poderia indicar presságios de vida ou morte. Quem não conseguisse ver a própria imagem refletida na água acreditava que a morte estava próxima.
A Lenda de Branca Dias e o Riacho da Prata
Uma das histórias mais envolventes ligadas a essas crenças é a da sinhazinha de Apipucos, que saiu em busca de seu destino nas águas do Riacho da Prata, atraída pela antiga tradição de “tirar a sorte”. A jovem, que já passava dos 20 anos e ansiava pelo casamento, dirigiu-se ao riacho, famoso por ser mal-assombrado e por supostamente abrigar a prata escondida da rica judia Branca Dias, que havia sido perseguida pela Inquisição no século XVII.
Branca Dias, figura histórica e lendária, teria enterrado sua prata nas águas do riacho, segundo a crença popular. O fantasma da judia, que vagava pelo local "botando sentido na prata", era uma presença que inquietava os moradores. Naquela noite de São João, a jovem esperava ver o reflexo de seu futuro marido nas águas. Mas, ao invés disso, encontrou algo muito mais sinistro.
Enquanto se debruçava sobre as águas, a jovem sentiu uma presença misteriosa. Assustada, gritou pela mucama, Luzia, que a acompanhava à distância. "Me acuda, Luzia! Me acuda que ela quer me levar!" A figura mencionada pela jovem, "ela", era claramente o fantasma de Branca Dias. Luzia correu para ajudar, mas já era tarde demais. A sinhazinha havia desaparecido nas profundezas do riacho, levada, segundo as crenças, pela judia rica e seu tesouro.
Essa lenda ecoa até hoje entre os moradores da região. Nas noites de lua cheia, ainda há quem afirme ver duas moças nuas nas águas do Riacho da Prata: uma seria Branca Dias, e a outra, a jovem desaparecida. Essas aparições reforçam a ligação do Recife Velho com o sobrenatural, especialmente nas noites de São João, quando o mundo material e o espiritual parecem se entrelaçar.
São João: Entre o Sagrado e o Sobrenatural
As festividades de São João no Recife sempre foram uma mistura de devoção religiosa, folclore e crenças antigas. O fogo e a água, dois elementos essenciais nas celebrações, simbolizam a purificação e a revelação, respectivamente. O fogo, que consome e transforma, é reverenciado, mas também temido. E a água, que limpa e purifica, também se torna um espelho de presságios e mistérios insondáveis.
O relato de Freyre sobre o São João antigo e suas histórias assombradas, como a da jovem de Apipucos e o fantasma de Branca Dias, nos lembra que o Recife não é apenas uma cidade histórica. É uma cidade onde o passado nunca está completamente enterrado, onde as lendas e as tradições ainda moldam a vida cotidiana.
Noites como a de São João revelam esse lado mágico da cidade, onde as barreiras entre o mundo dos vivos e dos mortos, do sagrado e do profano, tornam-se permeáveis. Para os recifenses, esses contos não são apenas histórias de terror — são parte de uma cultura viva, que conecta o presente com o passado em uma dança constante entre o real e o imaginário.
Assim, ao acendermos nossas fogueiras e celebrarmos São João, talvez seja bom lembrar que, em algum lugar, nas águas do Capibaribe ou nas profundezas do Riacho da Prata, as almas do Recife Velho ainda estão dançando, esperando para serem vistas.
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