Na virada do século XIX para o XX, quando Recife ainda pulsava ao ritmo das carruagens e das elegantes sinhás, circulava uma história que até hoje provoca calafrios e evoca o mistério profundo de nosso passado. Um relato vívido de uma aparição fantasmagórica registrada por Gilberto Freyre em seu icônico Assombrações do Recife Velho nos transporta para uma época em que o sobrenatural e o cotidiano estavam entrelaçados.
A protagonista desse episódio não era uma mulher comum, mas uma senhora de distinta linhagem pernambucana, acostumada aos luxos da vida urbana e do interior. Durante uma visita ao Recife, após o cansaço das compras, ela repousava tranquilamente numa cadeira de balanço. Já livre do espartilho apertado e das botas sufocantes, trajando sua matinée leve, como era de costume entre as senhoras de sua classe, desfrutava de um momento de paz. Aquela quietude, tão característica das tardes preguiçosas no Recife do século XIX, seria abruptamente interrompida por um acontecimento aterrorizante.
Sem estar fumando, lendo ou cochilando, sem o conforto de cafunés de uma mucama, a sinhá repousava, quando, de repente, soltou um grito de puro pavor. Um som tão forte e desesperado que não só assustou a casa, mas também foi ouvido nas ruas ao redor. Aflitos, parentes e serviçais correram para atendê-la. Médicos foram chamados às pressas em seus carros puxados por cavalos, numa tentativa de entender o que teria causado tamanho susto. A casa, que até então estava mergulhada no sossego típico de uma tarde recifense, agora fervilhava de inquietação.
Quando a senhora recobrou os sentidos, a explicação para o horror veio à tona: ela havia avistado a figura de seu tio, o Barão de Escada, envolto num lençol branco, manchado de sangue. A visão era tão vívida e aterradora que a fez desmaiar. Naquele tempo, aparições como essa eram interpretadas como maus presságios, e o medo de que algo terrível tivesse acontecido tomou conta de todos.
Horas depois, notícias chegaram do interior, confirmando o presságio sombrio: o Barão de Escada havia sido assassinado em um tiroteio durante as eleições na igreja de Vitória. O relato assustador da sinhá não era uma simples alucinação, mas uma premonição do trágico destino de seu tio.
O episódio do Barão de Escada nos lembra das muitas camadas que permeiam a história pernambucana — onde o sagrado e o profano, o real e o sobrenatural, sempre conviveram lado a lado. Recife, com suas lendas e fantasmas, continua a ser palco de histórias que transcendem o tempo, revivendo-se em memórias, contos e na rica literatura de cronistas como Gilberto Freyre.
Essa história, que mistura tragédia e mistério, nos leva a refletir sobre o imaginário recifense e pernambucano. O episódio reforça a ideia de que as aparições e presságios eram — e ainda são — uma parte essencial da cultura popular, permeando as crenças e os medos mais profundos do nosso povo. E quem poderia desconsiderar a visão de uma senhora tão ilustre, especialmente quando suas palavras foram confirmadas pela tragédia?
O Recife Velho guarda em suas ruas e becos não apenas a história política e social de um povo, mas também os segredos sombrios que atravessam gerações, resistindo ao tempo e ao progresso. O relato do Barão de Escada é apenas uma entre as muitas histórias que compõem o rico mosaico das assombrações que Freyre, com sua sensibilidade, nos legou.
Reflexões Sociológicas sobre o Sobrenatural
Este conto, além de fascinante, nos oferece uma janela para o entendimento das relações entre o sobrenatural e o social. As aparições, como a do Barão de Escada, refletiam a intrínseca ligação entre a vida e a morte, entre a política e o mistério. O fato de o barão ter sido assassinado em um contexto eleitoral revela também a violência histórica presente nas disputas de poder no Brasil do final do século XIX.
Em um contexto marcado pela tensão política e pelas mudanças sociais, a figura do fantasma surge não apenas como um presságio, mas como uma representação simbólica das instabilidades da época. As eleições, muitas vezes conturbadas e sangrentas, eram palco de batalhas não apenas políticas, mas também de vida e morte, onde o sobrenatural se misturava às disputas terrenas.
Além disso, a relação entre a sinhá e sua visão nos remete a uma das características mais marcantes da obra de Gilberto Freyre: a capacidade de captar a atmosfera única do Recife, onde o passado colonial e a modernidade emergente se entrelaçam com o misticismo popular. A crença em aparições e presságios era uma forma de lidar com o imprevisível e o inexplicável, oferecendo ao povo um meio de compreender o mundo ao seu redor.
No fim, seja lenda, seja verdade, o relato do Barão de Escada é um testemunho vivo da rica tradição oral e mítica do nosso Recife — uma cidade que nunca perde seu fascínio e mistério.
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