Recife, com suas ruas estreitas e casarões antigos, guarda uma história rica e envolta em mistérios. E um desses mistérios, tão típico da atmosfera da cidade, está profundamente entrelaçado com as memórias de um mastro de navio e os fantasmas britânicos que um dia habitaram a imaginação dos recifenses.
Na proximidades na antiga Estação Ponte d’Uchoa, em frente ao excêntrico casarão gótico que também já foi o palacete do médico e milionário Manuel Batista da Silva, por muitos anos se via um alto mastro de navio a vela. Esse mastro, que parece ter nascido de uma relação sentimental entre um antigo comandante inglês e o navio que um dia comandou pelos mares do Norte e do Sul, trazia consigo uma aura de mistério. Dizem que o velho comandante, incapaz de se despedir de seu navio ao se fixar no Recife, ergueu o mastro no jardim como uma lembrança do mar — e talvez como uma âncora para seu próprio espírito nostálgico.
O casarão gótico, em si, já chamava a atenção dos cronistas do século XIX, com sua arquitetura exótica e bizarra, destoando do ambiente tropical. O mastro do navio, plantado ali como se a própria casa tivesse encalhado em algum recanto esquecido da cidade, apenas reforçava o clima de estranheza. E, como não poderia deixar de ser, histórias de assombrações começaram a circular entre os recifenses.
Segundo um "inglês de água doce" — como Gilberto Freyre o descreve, um britânico nascido no Brasil e casado com uma pernambucana —, o mastro teria adquirido fama de mal-assombrado. Quem passasse pelo casarão solitário à noite, especialmente nas noites de escuridão, poderia ver no topo do mastro a silhueta de um marinheiro. E não seria qualquer marinheiro, mas um inglês, ligado ao navio do comandante que havia fixado sua morada no Recife.Essa imagem, de um marinheiro britânico, refletia não apenas a saudade do comandante pelo seu navio, mas também a saudade dos recifenses antigos por um tempo em que o misterioso, o sobrenatural, coexistia com o cotidiano da cidade. O mastro, que outrora fora símbolo de aventura e exploração, agora se tornara palco de uma melancolia fantasmagórica.
Anos depois, o fantasma de um outro inglês, o enigmático mister B., apareceu na mesma área. Desta vez, ele não se manifestou no alto do mastro, mas diante de uma jovem chamada Lurdinha. O vulto esbranquiçado vestia um dólmã branco e sapatos elegantes, semelhantes aos usados pelos ingleses para jogar tênis. Lurdinha, assustada, descreveu o fantasma à sua família, que não teve dúvidas de que se tratava de mister B., um antigo morador da casa.
Esse fantasma, no entanto, não era de natureza ameaçadora. Sua presença parecia ser marcada por uma certa formalidade britânica: apareceu, observou a menina e, ao perceber que estava assombrando uma simples jovem, desapareceu sem ruídos ou gestos. Como protestante, mister B. não pediu uma missa para seu descanso, e tampouco indicou algum tesouro oculto nas paredes da casa — como tantas vezes acontece em histórias de fantasmas.
Outros relatos surgiram na mesma casa, como o de um bebê fantasmagórico, descrito por outra família que ali viveu. Esse bebê, no entanto, parecia ser uma entidade brincalhona, uma espécie de irmão do fantasminha feliz que habitava outra casa no bairro da Boa Vista. Esses espíritos, longe de aterrorizar, traziam uma presença suave e quase infantil, enriquecendo ainda mais a narrativa de um Recife cheio de nuances, onde o passado colonial e as influências estrangeiras deixaram marcas profundas.
Reflexão sobre o Imaginário Recifense e a Presença Inglesa
Essa história do mastro do navio e seus fantasmas ingleses nos convida a refletir sobre a complexa relação entre o Recife e o estrangeiro, em particular com os britânicos. Durante o século XIX, Recife, como uma cidade portuária de grande importância no Atlântico Sul, sempre atraiu comerciantes e aventureiros europeus, especialmente ingleses, que contribuíram para a sua economia e cultura. No entanto, como bem capta Gilberto Freyre, essa presença estrangeira também deixou vestígios profundos no imaginário local.
O mastro, que antes simbolizava a ligação do comandante inglês com o mar e sua saudade de um tempo passado, transformou-se em um elemento carregado de simbolismo para a cidade. Sua "mal-assombração" era um reflexo não apenas do luto individual, mas também de uma sensação coletiva de deslocamento, de estrangeiros que nunca se integraram completamente ao Recife e que, de alguma forma, ainda vagavam pelas ruas da cidade, mesmo depois de mortos.
A figura de mister B., formal, correto e silencioso, assombra como um representante de uma era que não mais existe. Sua aparição à jovem Lurdinha, tão fugaz e cortês, é quase uma metáfora para o impacto que os estrangeiros tiveram em Pernambuco: profundo, mas passageiro, deixando marcas indeléveis na arquitetura, na economia e até nas lendas populares.
No fim, as assombrações recifenses, sejam elas de ingleses ou de figuras locais, reforçam a atmosfera singular da cidade. Recife é um lugar onde o passado nunca está realmente distante, onde fantasmas de tempos antigos ainda caminham entre nós — e, como bem diria Gilberto Freyre, onde até os mastros de navios podem contar suas próprias histórias.
O Sobrenatural e o Recife Velho
Em um Recife onde o novo e o antigo convivem, histórias como essa nos mostram o quanto a cidade é rica em narrativas que transcendem o tempo. E, mais do que isso, mostram como o sobrenatural está intrinsecamente ligado à nossa história, à nossa maneira de compreender o mundo. O fantasma do marinheiro inglês e a figura de mister B. não apenas assombram o Recife Velho — eles nos lembram de como a cidade, com suas tantas influências estrangeiras e seu misticismo próprio, nunca deixa de nos surpreender.
Recife, afinal, é uma cidade onde as lendas vivem ao lado de seus habitantes, onde o presente é sempre tocado pelo passado. E as assombrações, longe de serem apenas contos de terror, são parte vital da alma recifense.
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