Os corredores silenciosos dos hospitais, sobretudo à noite, sempre carregaram um quê de mistério. Não apenas por sua arquitetura muitas vezes labiríntica ou pelo eco de passos que ressoam no vazio, mas porque ali pulsa - ou se esvai - a fronteira tênue entre a vida e a morte. O relato a seguir, enviado por uma técnica de enfermagem aposentada, nos leva ao Hospital Barão de Lucena, um dos mais importantes centros médicos de Pernambuco, e revela um dos episódios mais inquietantes da história oral hospitalar da cidade.
“Sou uma técnica de enfermagem, hoje aposentada. Eu trabalhava no Hospital Barão de Lucena (HBL). Não quero ser identificada, pois sou muito conhecida. Vamos ao que interessa: uma médica que chefiava o setor infantil do HBL relatou - não só a mim, mas a outras colegas - que precisou ir a um certo setor dos andares da UTI pediátrica, quando encontrou um homem de botas, chapéu e chicote na mão. Ela perguntou o que ele estaria fazendo ali naquela hora. Ele olhou para ela e permaneceu em silêncio, mas não foi a última vez que ela o veria.
Após o término do plantão, ao entrar no carro para ir para casa, a médica olhou pelo retrovisor e viu o mesmo homem no banco de trás. Tomou um susto - foi quando caiu em si do que estava acontecendo.”
O que é essa figura do homem de botas, chapéu e chicote?
A imagem descrita parece saída de um pesadelo rural, como uma entidade arquetípica. No universo da mitologia e do folclore latino-americano, figuras semelhantes aparecem como entidades liminares - isto é, que transitam entre dois mundos. No Brasil, temos o "Homem do Saco", o "Quebra Panelas" e até o temido "Pé de Garrafa" como representações do perigo ou da morte rondando os vivos. Já o chicote e as botas podem remeter ao capataz, figura de autoridade em antigas fazendas - alguém que impunha ordem com violência. Uma leitura simbólica pode indicar a presença do arquetípico Senhor da Morte ou psicopompo, entidade responsável por conduzir as almas ao além.
A presença da morte nos espaços médicos
Como psicólogo, é impossível ignorar o peso psíquico do ambiente hospitalar. Estudos em psicologia hospitalar mostram que profissionais de saúde, submetidos a plantões exaustivos e à constante presença da finitude, podem vivenciar episódios de dissociação, alucinações transitórias ou sonhos lúcidos durante o estado de vigília. No entanto, quando o mesmo relato é compartilhado por mais de uma pessoa ou mantém uma coerência simbólica ao longo dos anos, saímos do campo da psicopatologia (na falta de um termo mais adequado) e entramos no território do fenômeno coletivo e cultural.
O arquétipo do intruso silencioso
Do ponto de vista junguiano, a aparição desse homem pode ser entendida como a sombra: tudo aquilo que reprimimos ou não integramos na consciência. Em um espaço como a UTI pediátrica, onde o sofrimento é inocente, a aparição de uma figura masculina, rústica e silenciosa, pode ser interpretada como o inconsciente dando forma a algo que não se pode nomear: a culpa, o fracasso terapêutico, o luto.
Uma assombração ou um aviso?
Do ponto de vista antropológico, lendas hospitalares são comuns em diversas culturas. Na Inglaterra, fala-se da enfermeira fantasma que aparece antes de um óbito. No Japão, espíritos de crianças costumam vagar pelos corredores dos hospitais pediátricos. Em todos os casos, há um padrão: as manifestações ocorrem em ambientes de transição e estão relacionadas ao sofrimento, à perda ou ao trauma.
O que chama atenção aqui é o deslocamento da figura: do hospital para dentro do carro da médica. Isso pode indicar, do ponto de vista simbólico, que ela não conseguiu deixar o sofrimento no ambiente de trabalho, carregando-o consigo para casa - uma metáfora potente para os profissionais da saúde que, muitas vezes, não conseguem “desligar o plantão”.
Nunca são apenas histórias de fantasmas!
O relato, assustador e fascinante, não é apenas uma história de fantasma: é também um espelho das nossas angústias, da culpa diante da morte, e da sensação de que há forças - sejam psíquicas ou espirituais - que nos observam nos momentos de maior fragilidade.
Talvez nunca saibamos se o homem de botas era real, alucinação, espírito ou sombra. Mas ele continuará vivendo, à espreita, entre as memórias daqueles que trabalham nas trincheiras do sofrimento humano. E, como toda boa assombração, ele nos lembra que há mais mistérios entre a vida e a morte do que nossa razão é capaz de compreender.
Comentários
Postar um comentário