Entre o Folclore e a Moralidade na Infância Recifense
Na obra Assombrações do Recife Velho, Gilberto Freyre nos transporta para um Recife onde o sobrenatural caminhava lado a lado com a vida cotidiana. Entre as figuras fantásticas que habitavam o imaginário popular da cidade, destaca-se a temida Cabra Cabriola, um ser que aterrorizava especialmente as crianças. Diferente do lobisomem, que se escondia nos ermos, a cabriola invadia as casas, com olhos e narinas em chamas, à caça dos meninos travessos.
Era um verdadeiro pesadelo ambulante: “Eu sou a cabra cabriola, que como meninos aos pares.” Esse verso, entoado em tom ameaçador, soava como uma sentença para qualquer criança que ousasse desobedecer. Mais do que um monstro de contos de terror, a cabra cabriola funcionava como um instrumento de controle social, usado por pais e avós para manter a disciplina em casa. Era a representação máxima do castigo para os desobedientes, transformando o medo em lição de moral.
Um Monstro Dentro de Casa
Enquanto o lobisomem permanecia restrito aos lugares ermos, a cabra cabriola tinha a audácia de entrar no próprio lar, tornando a ameaça ainda mais palpável. Qualquer barulho estranho durante a noite — o ruído de um timbu em busca de frutas maduras ou de uma raposa rondando galinheiros — podia ser interpretado como a aproximação da cabriola. Era o suficiente para que as crianças corressem para os braços das mães ou avós, em busca de proteção.
Para escapar desse destino assustador, o comportamento exemplar era a única saída: obedecer ao pai, respeitar a mãe, evitar travessuras e até mesmo não molhar a cama. A cabra cabriola não ousava entrar em lares onde reinava a obediência. Para os pequenos recifenses, a mensagem era clara: o bom comportamento era a única defesa contra o monstro que devorava meninos.
O Choro da Noite e o Medo Real
Uma das imagens mais impactantes descritas por Freyre é o som distante de um choro infantil nas noites do Recife antigo. Para as crianças, esse lamento era quase sempre associado à cabra cabriola em ação, punindo algum menino desobediente. O medo se espalhava: quem estava acordado corria para se esconder sob os lençóis, fazia o sinal da cruz ou rezava fervorosamente. O pânico era real, mas a verdade, como o próprio autor revela, era bem mais trágica.
Na maioria das vezes, o choro ouvido nas noites escuras não era causado por um monstro mítico, mas por crianças doentes, devastadas por enfermidades que assolavam o Recife naquela época, como febres intensas ou a temida bexiga lixa (varíola). A cabra cabriola, nesse contexto, personificava os temores reais de uma época em que a infância estava vulnerável a doenças e à falta de recursos médicos adequados.
Entre o Folclore e a Realidade
A lenda da cabra cabriola é um exemplo perfeito de como o folclore pode refletir as angústias de uma sociedade. Em um Recife marcado por desigualdades sociais e desafios sanitários, o mito funcionava como uma ferramenta educativa, mas também como um espelho dos medos mais profundos. A ameaça da cabriola era, na verdade, a expressão simbólica de perigos muito reais.
Gilberto Freyre, com sua maestria em capturar a alma do Recife, mostra que essas histórias não são apenas contos de terror, mas também janelas para a compreensão da cultura e das relações familiares de uma época. A cabra cabriola não era apenas um monstro para assustar crianças — era uma representação das normas sociais, das expectativas sobre o comportamento infantil e, ao mesmo tempo, um reflexo dos desafios enfrentados pela cidade.
O Recife e Suas Assombrações
O Recife de Freyre é um lugar onde o sobrenatural e o cotidiano se entrelaçam de forma indissociável. A cabra cabriola, com seu fogo nos olhos e sua presença aterradora, continua a ecoar como um símbolo das histórias que moldaram gerações. Hoje, essa figura pode parecer apenas parte do folclore, mas ela carrega consigo a memória de um tempo em que o medo era uma lição e as lendas eram uma forma de entender o mundo.
Para aqueles que conhecem a história do Recife, a cabra cabriola é mais do que um personagem de lenda urbana — é um retrato vívido das noites sombrias da cidade, onde o real e o fantástico se encontravam à luz dos lampiões. E talvez, em alguma rua antiga e silenciosa, ainda seja possível ouvir um choro distante, lembrando que as assombrações do Recife Velho nunca desaparecem completamente.
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